Li intressante artigo sobre o tema e, mesmo sendo o autor um ilustre [xará] desconhecido para mim, publico suas letras, como forma de reflexão sobre a identidade cultural na atualidade, aqui no sul longínquo:
Nenhum gaúcho existe, por Marcelo Rocha *
Se Carlos Drummond de Andrade, em seu poema Hino Nacional, já questionava a existência do Brasil e dos brasileiros, talvez não fosse tão absurdo que nós, gaúchos, às vésperas de mais uma Semana Farroupilha, refletíssemos a respeito da construção simbólica de nossa identidade. A figura do gaúcho, metonímia do Rio Grande do Sul, é fixada pela literatura romântica regionalista no século 19 e passa, desde então, a subsumir as demais histórias de formação do Estado, em função do sonho, às vezes obsessivo, por uma mítica República Rio-Grandense. A narração constrói um tipo humano em seu meio ideal e o gaúcho de origem errante, contrabandista de gado e sem território transforma-se em herói coletivo sempre disposto a empunhar a bandeira da liberdade em conflitos para preservação da autonomia territorial.A despeito dessa bandeira, é justamente na época da ditadura militar que a Semana Farroupilha adquiriu um caráter oficial. Em lei de dezembro de 1964, determinou-se que esse festejo fosse organizado a partir da articulação entre instituições públicas e civis. Dez anos depois, ainda na época do regime militar, foi criado o Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore (IGTF), reforçando os laços entre o poder oficial e a simbologia regional. Assim e durante algumas décadas ainda, as forças da repressão e os ícones da representação dividiram, solidariamente, o mesmo mate amargo.Com efeito, toda construção tem suas sobras. Assim, o projeto de definição do gaúcho vem acompanhado mais de exclusões do que inclusões. Dessa forma, se não somos brasileiros – como o discurso mais fundamentalista salienta – nem platinos, como muitos gostariam, habitamos um entrelugar ou um espaço em que nossas raízes viraram rotas, repetindo o jogo de palavras de Stuart Hall. Habitamos, por fim, um lugar que não existe.A parte disso, não podemos esquecer de que o pala do gaúcho também é tecido por diversos retalhos. Nossos primeiros habitantes foram os indígenas cuja história mostra as representações das Missões Jesuíticas e as lutas dos guaranis pela manutenção do território. Além deles, os negros foram fundamentais para a nossa cultura e economia, seja na presença das religiões afro-brasileiras ou de narrativas ficcionais, incorporadas ao nosso folclore, seja no trabalho com o gado nas charqueadas, na época da escravidão. De igual modo, as colonizações alemã e italiana foram sobejamente importantes na formação de nosso Estado, sobretudo no desenvolvimento da agricultura, com a diversidade produtiva e no trabalho com o couro. Isso sem falar em projetos individuais ou coletivos de colonização com espanhóis, russos, poloneses, entre outros, que ajudaram a compor esse mosaico multiétnico do qual fazemos parte.Portanto, em função dessa multiplicidade de rostos e definições torna-se impossível estabelecer de maneira absoluta o que seja o Rio Grande do Sul ou os gaúchos. O resultado será sempre parcial, ideológico e lacunar. Por outro lado, o reconhecimento dessa pluralidade étnica e cultural que nos compõe talvez seja o caminho mais justo para escolhermos uma imagem menos autoritária e ortodoxa que nos represente.
* Professor da Unipampa de São Borja
Se Carlos Drummond de Andrade, em seu poema Hino Nacional, já questionava a existência do Brasil e dos brasileiros, talvez não fosse tão absurdo que nós, gaúchos, às vésperas de mais uma Semana Farroupilha, refletíssemos a respeito da construção simbólica de nossa identidade. A figura do gaúcho, metonímia do Rio Grande do Sul, é fixada pela literatura romântica regionalista no século 19 e passa, desde então, a subsumir as demais histórias de formação do Estado, em função do sonho, às vezes obsessivo, por uma mítica República Rio-Grandense. A narração constrói um tipo humano em seu meio ideal e o gaúcho de origem errante, contrabandista de gado e sem território transforma-se em herói coletivo sempre disposto a empunhar a bandeira da liberdade em conflitos para preservação da autonomia territorial.A despeito dessa bandeira, é justamente na época da ditadura militar que a Semana Farroupilha adquiriu um caráter oficial. Em lei de dezembro de 1964, determinou-se que esse festejo fosse organizado a partir da articulação entre instituições públicas e civis. Dez anos depois, ainda na época do regime militar, foi criado o Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore (IGTF), reforçando os laços entre o poder oficial e a simbologia regional. Assim e durante algumas décadas ainda, as forças da repressão e os ícones da representação dividiram, solidariamente, o mesmo mate amargo.Com efeito, toda construção tem suas sobras. Assim, o projeto de definição do gaúcho vem acompanhado mais de exclusões do que inclusões. Dessa forma, se não somos brasileiros – como o discurso mais fundamentalista salienta – nem platinos, como muitos gostariam, habitamos um entrelugar ou um espaço em que nossas raízes viraram rotas, repetindo o jogo de palavras de Stuart Hall. Habitamos, por fim, um lugar que não existe.A parte disso, não podemos esquecer de que o pala do gaúcho também é tecido por diversos retalhos. Nossos primeiros habitantes foram os indígenas cuja história mostra as representações das Missões Jesuíticas e as lutas dos guaranis pela manutenção do território. Além deles, os negros foram fundamentais para a nossa cultura e economia, seja na presença das religiões afro-brasileiras ou de narrativas ficcionais, incorporadas ao nosso folclore, seja no trabalho com o gado nas charqueadas, na época da escravidão. De igual modo, as colonizações alemã e italiana foram sobejamente importantes na formação de nosso Estado, sobretudo no desenvolvimento da agricultura, com a diversidade produtiva e no trabalho com o couro. Isso sem falar em projetos individuais ou coletivos de colonização com espanhóis, russos, poloneses, entre outros, que ajudaram a compor esse mosaico multiétnico do qual fazemos parte.Portanto, em função dessa multiplicidade de rostos e definições torna-se impossível estabelecer de maneira absoluta o que seja o Rio Grande do Sul ou os gaúchos. O resultado será sempre parcial, ideológico e lacunar. Por outro lado, o reconhecimento dessa pluralidade étnica e cultural que nos compõe talvez seja o caminho mais justo para escolhermos uma imagem menos autoritária e ortodoxa que nos represente.
* Professor da Unipampa de São Borja